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Menino de Engenho

INDICAÇÕES DE LIVROS*

  • LIVRO: Menino de engenho.
  • AUTOR: José Lins do Rego. 
  • PUBLICAÇÃO ORIGINAL: Brasil, 1932.
  • EDITORA: José Olympio.

         Na casa de meu pai tem uma biblioteca. Por ser militar, graduado em direito e história, imagina-se facilmente o conteúdo de suas prateleiras. Entre Grécia e Roma, entre golpes militares ou entre direito disso e daquilo fui influenciado pelos livros, mais pela beleza das figuras que pelo texto, é verdade. Porém no 8ª ano do ensino fundamental, minha professora de Português (“tia” Zulmira) agendou uma prova sobre a leitura de um livro: MENINO DE ENGENHO. Até aquele momento minhas leituras eram simplesmente quadrinhos (Tex; Heróis da TV; Superaventuras Marvel; Homem Aranha; Capitão América; Incrível Hulk), de repente fui atraído logo no primeiro parágrafo: “Eu tinha uns quatro anos no dia em que minha mãe morreu. Dormia no meu quarto, quando pela manhã [...]”; não consegui parar de ler, e este pequeno romance foi o primeiro de muitos outros que viriam pela frente.
Romance regionalista do ciclo da cana-de-açúcar
          A estória de um menino que fica órfão de mãe e é levado para o engenho de seu avô materno encravado no interior da Paraíba, é a linha central de desenvolvimento do romance. Nele é observada constantemente a vivência que o autor teve nos acontecimentos, retratando com muito naturalismo a realidade do ciclo da cana-de açúcar no Nordeste brasileiro.
          Você pode estar se perguntando: Por que um romance estaria presente entre as indicações bibliográficas de Biologia? A resposta é simples: Biologia é vida e vivência, é o moleque Ricardo, é o carro de boi, é o canário Marechal, o carneiro Jasmim, a Zefa Cajá, a tia Maria, a priminha da cidade e todo o universo sertanejo ao qual nossa história direta ou indiretamente está arraigada.
À medida que eu ia lendo o romance de José Lins do Rego, inúmeras lembranças de minha infância brotavam de uma memória já esquecida. Mas tem uma em especial que eu gostaria de retratar, a “matança às rolinhas”. Essa passagem me faz recordar dos absurdos praticados pelas crianças de minha época aos passarinhos. Gaiolas, alçapão, baladeiras e a arte de matar simplesmente por matar – se é que eu realmente nunca matei nenhum pássaro, mas fiz maldade sim (certa vez eu capturei um sibite (Coereba), pinguei algumas gotinhas de uísque em sua boca e depois o soltei para vê-lo voar embriagado barroando nas coisas), pois era comum dentro daquele contexto. Hoje lembro com muito remorso tudo aquilo. Vamos ao fatídico trecho mencionado no capítulo 9 do livro.

[...] O que eu queria era a liberdade de meus primos, agora que as arribaçãs, com a seca do sertão, estavam descendo em revoada para os bebedouros.  
Chamavam de arribaçãs as rolas sertanejas que desciam, batidas pela seca, para o litoral. Vinham em bando como uma nuvem, muito no alto, a espreitar um poço de água para a sede de seus dias de travessia. E quando o avistaram, faziam a aterrissagem em magote, escurecendo a areia branca do rio. Nós ficávamos de espreita, de cacete na mão, para o massacre. E a sede das pobres rolas era tal que elas nem davam pelos nossos intuitos. Matávamos a cacetadas, como se elas não tivessem asas para voar. A seca comera-lhes o instinto natural de defesa. Depois no colégio, quando no Gênio do cristianismo, eu lia uns versos falando dos pássaros da Bretanha, que fugiam do inverno de sua pátria, vinha-me a saudade das pobres rolas sertanejas que trucidávamos. [...]

Reparem na naturalidade com que se retrata a chacina, agora reflita que tais situações ainda continuam a acontecer, só menos intensamente pelo simples fato da diminuição da diversidade das aves de arribação. Aves, calangos, tatus, pacas, jacarés, cutias, iguanas e tantas outras espécies típicas do Nordeste estão desaparecendo de uma forma espantosa à medida que a população humana aumenta. Como conciliar o aumento da densidade demográfica humana com a conservação de tais espécies? Acrescento agora um pequeno trecho do excelente livro “O Poema Imperfeito” de Fernando Fernandez que nos revela uma dimensão mais real do extermínio que a humanidade tem praticado contra a natureza.

[...] Um dos mais violentos choques que já tive em minha vida foi ler o artigo A Floresta Vazia, publicado por Kent Redford, em 1992. Na sua tabela 1, Redford relaciona o número de animais e peles de animais de diferentes espécies exportados, legalmente de um único porto (Iquitos, um porto fluvial na Amazônia peruana) em cinco anos, 1962-1967. Os números falam por si mesmos: “Macacos vivos, 183.664. Peles: jacarés, Melanosuchus 47.616, Caiman 101.641; mamíferos, capivara (Hydrochaeris) 67.575, lontra (Lutra) 47.851, ariranha (Pteronura) 2.529, jaquatirica (Felis pardalis) 61.499, gato-do-mato (Felis wiedii) 9.565, onça pintada (Panthera) 5.345, cateto (Tayassu tajacu) 690.210, queixada (Tayassu peccari) 239.472, veado (Mazama) 169.775, total 1.626.751 [mais de 1,6 milhão!]”. Desculpe-me se aqui perco minha objetividade, mas dá vontade de chorar.
E há mais. Esta é a caça registrada legalmente, enquanto calcula-se que a caça ilegal seja pelo menos duas vezes maior que isso, o que triplicaria os números acima. Além disso os números se referem à caça comercial, e há, também, a caça de subsistência. Poderíamos achar que a caça de subsistência seja relativamente insignificante em relação à escala monstruosa da caça comercial, mas esta seria uma posição ingênua. Na Amazônia, a maior parte da proteína na dieta dos habitantes da mata, de baixo poder aquisitivo, é fornecida pela caça. Macacos são um dos pratos mais apreciados e a caça de subsistência é praticada em uma escala assustadora, mesmo por povos que dizemos conservacionistas e amigos da natureza. O primatólogo Carlos Peres morou com uma família de seringueiros e contou quantos macacos eles matavam e consumiam, sem interferir nos seus hábitos . Em um ano e meio foram trezentos e oitenta macacos mortos por aquela única família. Segundo o pesquisador, tratava-se de uma família típica, e as famílias vizinhas tinham hábitos de consumo similares. Dados estarrecedores como este levaram Redford a estimar que o volume total da caça de subsistência na Amazônia deve ser aproximadamente igual ao da caça comercial, o que nos leva a duplicar mais uma vez os números acima.
Infelizmente ainda há mais. Os dados de Iquitos são de 1962-1967, mas que diria Redford se tivesse visto a trágica corrida pela destruição de Rondônia, Mato Grosso e o leste do Pará nas décadas seguintes? Da década de 60 para cá, intensos fluxos migratórios povoaram vastas regiões da Amazônia e a população da região é hoje pelo menos umas cinco vezes maior do que era no período ao qual os dados dele se referem. O crescimento populacional aumenta a pressão sobre os recursos e agrava a caça como todos os demais problemas ambientais. Os números atuais sobre a caça, então, devem ser ainda maiores. [...]

Tento imaginar como será daqui pra frente. Uma ida sem volta, pois à medida que a biodiversidade diminuir a nossa espécie ficará cada vez mais ameaçada. A falta de informação e a comodidade de muitas crenças em atribuir a um Deus salvador a responsabilidade das coisas, me irritam. Quanto menor o grau de instrução das pessoas, maior é a facilidade com que são manipuladas, iludidas e aprisionadas em uma fé doentia de uma pseudosalvação que nunca virá.   
Como a conscientização a cerca das causas ambientais por meio da informação científica não consegue atingir as massas populacionais, penso que um pacto entre ciência e religião poderia ser um importante avanço. Quem dera se os padres, bispos, diáconos, rabinos, pais de santo e pastores fossem também biólogos, muita coisa poderia ser feita, mas infelizmente a maioria é completamente cega dentro de suas ceitas. Uma série de autores dedicados à Ética Ambiental usam a mensagem religiosa para retirar mensagens acerca da conservação da Natureza. O Cristianismo e outras religiões eram antropocêntricas, defendendo que os humanos deviam reproduzir-se, ocupar tudo e dominar a Natureza. Os autores procuram mostrar que o Homem tem responsabilidade de conservar a Natureza, mantendo-a em condições íntegras e funcionais. No Islamismo, refere-se que as coisas foram criadas em equilíbrio. No Hinduísmo, a identificação com outras formas de vida conduz à compaixão, e isto levou à conservação da floresta de cedros nos Himalaias. No Taoísmo, existe um tao, um caminho, da Natureza. No Budismo, procura-se controlar o desejo e reduzir o consumismo.
Todo político – de vereador até presidente – deveria ser graduado, e na grade curricular dessa graduação deveria obrigatoriamente conter a disciplina de Sistema de Gestão Ambiental. Conduzir uma gestão com o básico do conhecimento ecológico já faria uma grande diferença. Sei lá, o que não se pode é ficar de braços cruzados enquanto a natureza se desintegra perante nossos olhos.

*Biólogo, especialista em Genética & Evolução pela UFPI.

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