Há coisa de dois meses, resolvi vasculhar velhos papéis
dos meus tempos de estudante universitário. Entre poesias, letras de músicas de
um compositor frustrado, apostilas e cadernos antigos, encontrei também velhos
livros ainda do meu ensino médio. Após sacudir a poeira, passei a folhear o meu
primeiro livro de genética (e o primeiro a gente nunca esquece). Era o Aulas de
Biologia volume 2 do Airton César Marcondes, datado de 1982. Pronto, ao abrir
aquele livro libertei do seu interior uma série de fantasmas, lembranças,
odores e cenas que marcaram-me nos tempos do segundo ano científico (para ser
mais atual, ensino médio). Lembrei-me das primeiras canções do Kid Abelha e os
Abóboras Selvagens (huumm! Eu quero você como eu quero....), da beleza da
Adélia a menina mais bonita da sala e a mais rica, como nas músicas do Léo
Jaime (ela não gosta de mim mas é porque sou pobre...) e do Lulu Santos (a
garota mais bonita também era a mais rica e eu queria ir tocar guitarra na
TV...), dos apelidos de todos sempre associado a um nome de pássaro. Gavião,
pardal, Chico-preto, canário, urubu, carcará e outros.
Professor Hélio Paiva |
Porém, depois desse momento nostálgico tive uma ideia
de comparar o conteúdo do meu livro com alguns títulos mais recentes e
utilizados pelos alunos e professores das melhores escolas. Para ser honesto,
eu já sabia o que iria encontrar. Mas fui em frente. Conclui que fora a capa,
algumas figuras e certas questões dos últimos vestibulares, os livros-texto de
genética do atual ensino médio são réplicas daquele que usei há 20 anos. Vale
antecipar aqui, que o conhecimento da genética vem dobrando a cada 8 meses e
por isso, não se justifica essa falta de inovação presente nas novas
edições. Repete-se o conteúdo, a sua sequência, as histórias, os exemplos e a
abordagem.
É pena ver que a área que mais avança
fora dos muros da escola é exatamente a que mais petrificada se encontra dentro
dela. A genética é sem sombra de dúvida o ramo da biologia que mais imprimirá
mudanças na sociedade mundial nesse milênio. Interesses econômicos, políticos e
culturais aliados a uma bateria de conflitos bioéticos difundem-se pelo mundo
globalizado e afetarão padrões de consumo e ditarão regras comerciais entre
nações. Isso exige dos países economicamente frágeis e dependentes uma
preparação dos seus cidadãos para amadurecimento bioético urgente que possa
diminuir a vulnerabilidade dessas sociedades ao avanço das grandes corporações biotecnológicas
sobre a biodiversidade espetacular dos países periféricos e sobre esses gigantescos
mercados consumidores. Como formar adolescentes e futuros tomadores de decisão
se a escola insiste em desgastar, através da repetição e superexposição de
Mendel e de conceitos do século XIX e início do século XX, se o que se exige
hoje é uma leitura mais ética e social da genética. Creio que Mendel não está
descansando em paz. Seu nome é demasiadamente usado e colocado como o eixo dos
cursos de genética no ensino médio. Precisamos sempre valorizar o gênio do
monge austríaco, mas precisamos redimensionar e reestruturar sua posição no
contexto atual da disciplina. É inadmissível condenar nossos jovens a uma
condição de conhecedores defasados da nova genética e da onda biotecnológica
que avança sobre os países em desenvolvimento, enquanto as crianças e adolescentes
dos países mais ricos são preparados para produzir ciência e para gerar novas
tecnologias, bens e serviços para aumentarem o poder das suas nações. Como
podemos conscientizar e preparar os nossos alunos para tomada de decisões
em torno de questões como transgênicos, geneterapia, clonagem, manipulação de
embriões, doações de órgãos se ainda estamos tentando ensiná-los como cruzar
ervilhas lisas e rugosas para ver depois o que vai nascer?
Somos um grande mercado consumidor das novas
biotecnologias, é verdade. Mas vamos consumi-las cegamente, como já consumimos
todo tipo de bugigangas vinda das pradarias americanas ? Somos a grande
potencia em termos de biodiversidade, é verdade, também. Mas vamos ser expectadores
da bioprospecção, biopirataria e da degradação ambiental com perda de recursos
faunísticos e florísticos? Creio que estamos vivendo um momento decisivo no
qual poderemos liquidar de vez as nossas chances de nos fazermos fortes e
respeitados como nação. E isso só será possível se criarmos um contingente de
novos cientistas que sejam capazes de avançar sobre o nosso belo patrimônio
genético e dele extrair o conhecimento e os frutos para o desenvolvimento
econômico e a credibilidade brasileira mediante o mundo. Aliado a isso, é
necessário promover uma sociedade mais bem informada sobre o significado
da biotecnologia e torná-la parceira das iniciativas brasileiras no setor. Vale
ressaltar que o Governo deverá demonstrar explicitamente que Biotecnologia e
Ciência são questões estratégicas para auxiliar o sistema educacional formal a
desenvolver uma ampla formação de pessoas bem posicionadas diante do assunto.
No entanto, enquanto uma ação forte e coordenada não surge fora da Escola, é
preciso promover um ensino novo de genética e desenvolver atividades que
aprofundem o debate Bioético entre os jovens alunos do ensino básico. A escola
é naturalmente o palco para o desenrolar favorável desse debate e da preparação
da nossa sociedade, para o século da biotecnologia que agora se inicia.
No entanto, vale perguntar: a Escola brasileira está pronta para executar essa
árdua e inovadora tarefa? Quais são os agentes dentro da Escola que
deverão desempenhar o papel de promotores da Bioética entre os jovens
estudantes? Numa enquete que conduzi recente pude concluir que a quase
totalidade dos alunos do ensino médio já escutaram falar de Biotecnologia
segundo eles, através, principalmente, dos seus professores de Biologia. Porém,
quando questionados a respeito de conceitos extremamente simples e básicos
sobre genética, biologia molecular, biotecnologia e bioética, eles demonstraram
uma enorme fragilidade de opiniões e de conhecimento. Conceitos de gene,
genoma, transgênicos, cromossomos ou posicionamento sobre clonagem, geneterapia
e manipulação de embriões foram frustrantes e na maioria dos casos não foi
formulado sequer uma resposta. O que significa isso?
Lembro-me de um sermão do padre Vieira que tentava
elucidar de quem seria a culpa por alguém não compreender a palavra de Deus.
Seria de Deus, do Fiel ou do Pregador? Segundo Vieira, de Deus a culpa não
seria. Do fiel muito menos. O erro determinante estaria no pregador que
conhecendo as escrituras deveria, com seu sólido embasamento convencer e formar
um novo cristão. Na mesma linha de pensamento, sem deidificar o discurso,
imagino que a culpa dos jovens falharem na sua percepção da nova onda genômica
não é da Biotecnologia, nem deles mesmos e sim, do professor de Biologia que os
coloca em contato com essas ideias de maneira improvisada, amputada e
sensacionalista. Como se a sala de aula fosse uma tela de televisão em pleno
telejornal cheio de manchetes que não ajudam a formar um pensamento crítico
capaz de dar aos alunos um poder maior de tomada de decisões diante
de conflitos éticos e questões que nem mesmo são verdadeiramente sentidas por
eles devido à falta de uma discussão honesta e tocante por parte do
professor que acaba fazendo o papel de um âncora de TV que só se limita a
lançar manchetes para a plateia. O que fazer para mudar esse panorama?
Teresina, 02 de Novembro de 2004
Hélio Paiva Melo
*Biólogo, especialista em Bioética pelo ICF & Meio Ambiente pela
UFPI.