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sábado, 10 de março de 2012

DEIXEM O MENDEL EM PAZ! - Hélio Paiva Melo*


Há coisa de dois meses, resolvi vasculhar velhos papéis dos meus tempos de estudante universitário. Entre poesias, letras de músicas de um compositor frustrado, apostilas e cadernos antigos, encontrei também velhos livros ainda do meu ensino médio. Após sacudir a poeira, passei a folhear o meu primeiro livro de genética (e o primeiro a gente nunca esquece). Era o Aulas de Biologia volume 2 do Airton César Marcondes, datado de 1982. Pronto, ao abrir aquele livro libertei do seu interior uma série de fantasmas, lembranças, odores e cenas que marcaram-me nos tempos do segundo ano científico (para ser mais atual, ensino médio). Lembrei-me das primeiras canções do Kid Abelha e os Abóboras Selvagens (huumm! Eu quero você como eu quero....), da beleza da Adélia a menina mais bonita da sala e a mais rica, como nas músicas do Léo Jaime (ela não gosta de mim mas é porque sou pobre...) e do Lulu Santos (a garota mais bonita também era a mais rica e eu queria ir tocar guitarra na TV...), dos apelidos de todos sempre associado a um nome de pássaro. Gavião, pardal, Chico-preto, canário, urubu, carcará e outros.
Professor Hélio Paiva
Porém, depois desse momento nostálgico tive uma ideia de comparar o conteúdo do meu livro com alguns títulos mais recentes e utilizados pelos alunos e professores das melhores escolas. Para ser honesto, eu já sabia o que iria encontrar. Mas fui em frente. Conclui que fora a capa, algumas figuras e certas questões dos últimos vestibulares, os livros-texto de genética do atual ensino médio são réplicas daquele que usei há 20 anos. Vale antecipar aqui, que o conhecimento da genética vem dobrando a cada 8 meses e por isso, não se justifica essa falta de inovação  presente nas novas edições. Repete-se o conteúdo, a sua sequência, as histórias, os exemplos e a abordagem.
         É pena ver que a área que mais avança fora dos muros da escola é exatamente a que mais petrificada se encontra dentro dela. A genética é sem sombra de dúvida o ramo da biologia que mais imprimirá mudanças na sociedade mundial nesse milênio. Interesses econômicos, políticos e culturais aliados a uma bateria de conflitos bioéticos difundem-se pelo mundo globalizado e afetarão padrões de consumo e ditarão regras comerciais entre nações. Isso exige dos países economicamente frágeis e dependentes uma preparação dos seus cidadãos para amadurecimento bioético urgente que possa diminuir a vulnerabilidade dessas sociedades ao avanço das grandes corporações biotecnológicas sobre a biodiversidade espetacular dos países periféricos e sobre esses gigantescos mercados consumidores. Como formar adolescentes e futuros tomadores de decisão se a escola insiste em desgastar, através da repetição e superexposição de Mendel e de conceitos do século XIX e início do século XX, se o que se exige hoje é uma leitura mais ética e social da genética. Creio que Mendel não está descansando em paz. Seu nome é demasiadamente usado e colocado como o eixo dos cursos de genética no ensino médio. Precisamos sempre valorizar o gênio do monge austríaco, mas precisamos redimensionar e reestruturar sua posição no contexto atual  da disciplina. É inadmissível condenar nossos jovens a uma condição de conhecedores defasados da nova genética e da onda biotecnológica que avança sobre os países em desenvolvimento, enquanto as crianças e adolescentes dos países mais ricos são preparados para produzir ciência e para gerar novas tecnologias, bens e serviços para aumentarem o poder das suas nações. Como podemos conscientizar e preparar os nossos alunos para tomada de decisões  em torno de questões como transgênicos, geneterapia, clonagem, manipulação de embriões, doações de órgãos se ainda estamos tentando ensiná-los como cruzar ervilhas lisas e rugosas para ver depois o que vai nascer?
Somos um grande mercado consumidor das novas biotecnologias, é verdade. Mas vamos consumi-las cegamente, como já consumimos todo tipo de bugigangas  vinda das pradarias americanas ? Somos a grande potencia em termos de biodiversidade, é verdade, também. Mas vamos ser expectadores da bioprospecção, biopirataria e da degradação ambiental com perda de recursos faunísticos e florísticos? Creio que estamos vivendo um momento decisivo no qual poderemos liquidar de vez as nossas chances de nos fazermos fortes e respeitados como nação. E isso só será possível se criarmos um contingente de novos cientistas que sejam capazes de avançar sobre o nosso belo patrimônio genético e dele extrair o conhecimento e os frutos para o desenvolvimento econômico e a credibilidade brasileira mediante o mundo. Aliado a isso, é necessário promover uma sociedade mais bem informada sobre o significado   da biotecnologia e torná-la parceira das iniciativas brasileiras no setor. Vale ressaltar que o Governo deverá demonstrar explicitamente que Biotecnologia e Ciência são questões estratégicas para auxiliar o sistema educacional formal a desenvolver uma ampla formação de pessoas bem posicionadas diante do assunto. No entanto, enquanto uma ação forte e coordenada não surge fora da Escola, é preciso promover um ensino novo de genética e desenvolver atividades que aprofundem o debate Bioético entre os jovens alunos do ensino básico. A escola é naturalmente o palco para o desenrolar favorável desse debate e da preparação da nossa sociedade, para o século da  biotecnologia que agora se inicia. No entanto, vale perguntar: a Escola brasileira está pronta para executar essa árdua e inovadora tarefa?  Quais são os agentes dentro da Escola que deverão desempenhar o papel de promotores da Bioética entre os jovens estudantes? Numa enquete que conduzi recente pude concluir que a quase totalidade dos alunos do ensino médio já escutaram falar de Biotecnologia segundo eles, através, principalmente, dos seus professores de Biologia. Porém, quando questionados a respeito de conceitos extremamente simples e básicos sobre genética, biologia molecular, biotecnologia e bioética, eles demonstraram uma enorme fragilidade de opiniões e de conhecimento. Conceitos de gene, genoma, transgênicos, cromossomos ou posicionamento sobre clonagem, geneterapia e manipulação de embriões foram frustrantes e na maioria dos casos não foi formulado sequer uma resposta. O que significa isso?
Lembro-me de um sermão do padre Vieira que tentava elucidar de quem seria a culpa por alguém não compreender a palavra de Deus. Seria de Deus, do Fiel ou do Pregador? Segundo Vieira, de Deus a culpa não seria. Do fiel muito menos. O erro determinante estaria no pregador que conhecendo as escrituras deveria, com seu sólido embasamento convencer e formar um novo cristão. Na mesma linha de pensamento, sem deidificar o discurso, imagino que a culpa dos jovens falharem na sua percepção da nova onda genômica não é da Biotecnologia, nem deles mesmos e sim, do professor de Biologia que os coloca em contato com essas ideias de maneira improvisada, amputada e sensacionalista. Como se a sala de aula fosse uma tela de televisão em pleno telejornal cheio de manchetes que não ajudam a formar um pensamento crítico capaz de dar  aos alunos um poder maior  de tomada de decisões diante de conflitos éticos e questões que nem mesmo são verdadeiramente sentidas por eles devido à falta de uma discussão honesta e  tocante por parte do professor que acaba fazendo o papel de um âncora de TV que só se limita a lançar manchetes para a plateia. O que fazer para mudar esse panorama?
Teresina, 02 de Novembro de 2004
 Hélio Paiva Melo

*Biólogo, especialista em Bioética pelo ICF & Meio Ambiente pela UFPI.