DNA

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segunda-feira, 10 de setembro de 2012

EVENTOS EPIGENÉTICOS (Parte 2) - COMPENSAÇÃO DE DOSE - Lyndon Johnson Batista de Souza*




Em gatas malhadas de preto e amarelo, o cromossomo X no qual se localiza o alelo para cor preta (CP) está inativo nas regiões amarelas, enquanto o cromossomo X no qual se localiza o alelo para cor amarela (CA) está inativo nas regiões pretas. A cor branca é efeito de outro gene, que condiciona variegação de pelagem. Segundo Amabis & Martho 3ª ed. Moderna.
 
          O desenvolvimento animal geralmente é sensível a um desequilíbrio no número de genes. Normalmente, cada gene está presente em duas cópias. Os desvios desta condição, seja para cima ou para baixo, podem causar fenótipos anormais e às vezes até mesmo a morte. É portanto uma incógnita que tantas espécies devam ter um sistema de determinação do sexo baseado em fêmeas com dois cromossomos X e os machos com apenas um. O problema recai sobre organismos com sistema de determinação de sexo XX/XY ou XX/X0, pois de alguma forma eles têm de equalizar a atividade dos genes ligados ao X nos dois sexos. Nestas espécies, como é acomodada a diferença numérica de genes ligados ao X? A priori, três mecanismos podem compensar esta diferença de dose: (1) cada gene ligado ao X funciona duas vezes mais em machos que em fêmeas, (2) os dois cromossomos X são hipoativados, ou (3) uma cópia de cada gene ligado ao X é inativada nas fêmeas. Várias pesquisas mostraram que todos esses mecanismos são usados, o primeiro em Drosophila, o segundo em vermes nematoides, e o terceiro em mamíferos.1
Na Drosophila, a compensação de dose de genes ligados ao X é obtida por um aumento na atividade destes genes nos machos. Este fenômeno é chamado de hiperativação do cromossomo X e ocorre da seguinte forma, no cromossomo X dos machos existem pelo menos quatro genes localizados em um sítio que quando transcritos geram as proteínas MSL (male-specific lethal) – recebem essa denominação porque se não estiverem presentes não ocorre hiperativação e especificamente os machos morrem. Essas quatro proteínas juntamente com dois RNAs não codificantes (RoX 1 e RoX2), formam um complexo que promove a acetilação das histonas H4 causando uma alteração na estrutura da cromatina que duplica a intensidade da atividade transcricional do único cromossomo X do macho. Nas fêmeas, esse mecanismo não ocorre por conta da existência de um gene (Sxl) que inibe a transcrição dos genes RoX. Como o gene Sxl é ativo nas fêmeas e inativo nos machos, os RNAs RoX são produzidos apenas em machos. Deste modo, a atividade total de genes ligados ao X nos machos e fêmeas é aproximadamente igualada.2
O sistema de determinação do sexo em vermes nematoides é do tipo XX/X0; os indivíduos XX são hermafroditas (eles funcionam tanto como macho quanto como fêmea) e os indivíduos X0 são machos. Nestes animais, ocorre a hipoativação dos cromossomos X por meio da repressão parcial de genes ligados em ambos os cromossomos X nas células somáticas de hermafroditas. Isso ocorre por meio de alterações estruturais que envolvem a associação de proteínas específicas aos dois X que atrai outras proteínas, incluindo um complexo tipo condensina, que completa a estrutura especializada destes cromossomos. Tal mecanismo é exatamente oposto ao das Drosophilas, ou seja, um complexo proteico liga-se aos cromossomos X e reprime a transcrição em vez de acentuá-la. Os genes para essas proteínas só são transcritos somente quando dois cromossomos X estão presentes, não ligando-se ao único X dos machos nem a nenhum dos autossomos.3
Nos mamíferos placentários, a compensação de dose de genes ligados ao X é obtida pela inativação de um dos cromossomos X das fêmeas. Este mecanismo foi inicialmente proposto em 1961 pela geneticista britânica Mary Lyon, que o deduziu de estudos em camundongos. Os cromossomos sexuais X e Y diferem radicalmente no seu conteúdo gênico: o cromossomo X é grande e contém mais de mil genes, enquanto o cromossomo Y é menor e contém menos de cem genes. As mutações que interferem na compensação de dose são letais, demostrando a necessidade da manutenção da relação correta dos produtos gênicos dos cromossomos X para os dos autossomos. As pesquisas apontaram que ambos os cromossomos X são ativos do zigoto até a gástrula (até 10 dias após a fertilização), momento em que cada célula toma uma decisão independente para silenciar um de seus cromossomos X. O cromossomo a ser inativado é escolhido ao acaso. Uma vez escolhido, entretanto, ele permanece inativo em todos os descendentes desta célula. Assim, as fêmeas de mamíferos são mosaicos genéticos contendo dois tipos de clones celulares. O cromossomo X herdado maternamente é inativado em mais ou menos metade destes clones, e o paternamente herdado é inativado na outra metade. Uma fêmea que é heterozigota para um alelo ligado ao X é portanto capaz de apresentar dois fenótipos diferentes. Os homens, possuindo apenas uma cópia do cromossomo X, não são mosaicos, mas são hemizigotos para o cromossomo X.4  É bom lembrarmos que embora a inativação seja ao acaso entre as células que compõem o embrião em si, apenas o cromossomo X de origem paterna é inativado nas células que vão se diferenciar em placenta e outras membranas fetais (leia o artigo Imprinting Genômico).

Três mecanismos de compensação de dose para genes ligados ao X: inativação, hiperativação e hipoativação. Segundo SNUSTAD & SIMMONS. 2ª ed. Guanabara Koogan.
        Um dos melhores exemplos deste mosaicismo vem do estudo da coloração do pelo em gatos e camundongos. Em ambas as espécies, o cromossomo X porta um gene para pigmentação do pelo. As fêmeas heterozigotas para alelos diferentes deste gene mostram placas de pelos claros e escuros. As placas claras expressam um alelo; as escuras expressam o outro. Em “gatas calico”, onde um alelo produz o pigmento preto e o outro produz pigmento laranja, este fenótipo em placas é chamado de tortoiseshell (coloração matizada de uma gata com pelagem casco de tartaruga). Cada placa de pelos define um clone de células produtoras de pigmento, ou melanócitos, que foram derivadas por mitose de uma célula precursora presente no momento da inativação do cromossomo X. Os machos dessa raça não exibem cores alternadas. Em humanos, a formação de mosaicos pode ser observada em uma mutação recessiva ligada ao X que previne o desenvolvimento das glândulas sudoríparas. Uma mulher heterozigota para essa característica tem áreas de pele normal e áreas de pele sem glândulas sudoríparas.5 Um outro exemplo em humanos é o albinismo ocular ligado ao X. Essa é uma condição recessiva ligada ao X caracterizada pela ausência da produção de melanina na retina e por problemas oculares, tais como nistagmo (movimentos rápidos e involuntários dos olhos) e acuidade visual diminuída. Os homens que herdam a mutação mostram uma ausência uniforme de melanina em suas retinas, enquanto as mulheres heterozigotas exibem placas alternadas de tecido pigmentado e não pigmentado. A hipótese de Lyon também foi sustentada por evidências bioquímicas. A enzima glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD) é codificada por um gene no cromossomo X e está presente em iguais quantidades em homens e mulheres (compensação de dose). Em mulheres que são heterozigotas para dois alelos G6PD comuns (denominados A e B), algumas células da pele produzem apenas a variante A da enzima, e outras produzem apenas a variante B. Isso é uma prova adicional do mosaicismo do cromossomo X nas mulheres.4  
A análise genética mostrou que a inativação de um dos cromossomos X começa em um ponto específico no braço longo do cromossomo X e se espalha em ambos os sentidos para as extremidades teloméricas. O local iniciador é chamado de centro de inativação do X (XIC) e abriga um gene chamado de XIST (transcrito específico de inativação do X). No início do desenvolvimento embrionário ambos os cromossomos X são ativos, porém a medida que o desenvolvimento continua ocorre a metilação dos nucleotídeos no promotor de um dos alelos XIST em um dos X. O outro cromossomo em que o XIST ficou ativo, produz um transcrito (RNA XIST de 17 Kb) que permanece no núcleo onde vai aos poucos envolvendo e cobrindo todo o X que acaba ficando totalmente inativado. No sistema de compensação de dose dos mamíferos, portanto, o cromossomo X que permanece ativo é, paradoxalmente, o que reprime seu gene XIST.
O cromossomo X que foi inativado apresenta-se com seu DNA modificado pela adição de numerosos grupos metil e suas histonas estão desacetiladas. Além disso, ele se condensa em uma estrutura fortemente corada chamada corpúsculo de Barr, em homenagem ao geneticista canadense Murray Barr, que primeiro o observou. Esta estrutura fica ligada à face interna da carioteca, e se descondensa durante a fase S da intérfase para permitir que o cromossomo X inativo seja replicado, entretanto, como esse processo leva algum tempo, o X inativo se replica mais tarde que o resto dos cromossomos (replicação tardia). O cromossomo X inativado permanece neste estado alterado em todos os tecidos somáticos, porém, nos tecidos germinativos do ovário ele é reativado, pois alguns genes da ovocitogênese precisam de dois alelos funcionais. 
Expressão do gene XIST no cromossomo X inativo das fêmeas humanas.
Uma implicação importante da hipótese de Lyon é que o número de corpúsculos de Barr em células somáticas é sempre um a menos do que o número de cromossomos X. Mulheres normais possuem um corpúsculo de Barr em cada célula somática, enquanto homens normais não possuem nenhum. Mulheres com síndrome de Turner, possuindo apenas um cromossomo X, não têm corpúsculo de Barr. Homens com síndrome de Klinefelter possuem um corpúsculo de Barr em suas células somáticas, e mulheres que possuem três cromossomos X por célula têm dois corpúsculos de Barr em cada célula somática. Esse padrão nos leva a um questionamento: se os cromossomos X extras são inativados, porque as pessoas com um cromossomo X extra (ou ausente) não são fenotipicamente normais?
           A resposta para essa questão é que a inativação do X é incompleta. Algumas regiões do cromossomo X permanecem ativas em todas as cópias. Particularmente, as pontas dos braços curtos e longos do cromossomo X não sofrem inativação. A ponta do braço curto do cromossomo X é altamente homóloga ao braço curto distal do cromossomo Y. Outras regiões que escapam à inativação incluem aquelas que contêm os genes para a esteroide sulfatase, o grupo sanguíneo Xg e a síndrome de Kallman (um distúrbio que causa hipogonadismo e incapacidade de perceber odores). Estudos recentes indicam que cerca de 15% dos genes do cromossomo X podem escapar à inativação: relativamente, escapam à inativação do X mais genes no braço curto do que no braço longo. Alguns dos genes ligados ao X que escapam à inativação possuem homologia no cromossomo Y, preservando a dosagem gênica igual em homens e mulheres. Assim, possuir cópias extras (ou ausentes) de porções ativas do cromossomo X contribui para anomalia fenotípica.4 Em geral, todos os X inativados se unem em um só corpúsculo de Barr. Estas observações sugerem que as células podem ter uma quantidade limitada de algum fator necessário para evitar a inativação do X. Uma vez que este fator tenha sido usado para manter um cromossomo X ativo, todos os outros entram no processo de inativação.
           O corpúsculo de Barr permite diferenciar células dos dois sexos, uma vez que as células femininas são “corpúsculo sexual positiva”, enquanto as células masculinas são “corpúsculo sexual negativa”. Um leve raspado de células do interior da boca (mucosa bucal) é espalhado numa lâmina, fixado e corado para revelar a presença ou ausência do corpúsculo de Barr, que distingue o sexo feminino do masculino – ou, mais precisamente, determina se um indivíduo tem mais de um cromossomo X.6 Esses exames já foram empregados em competições esportivas para elucidar dúvidas de suspeita de que o sexo de uma atleta não corresponderia à categoria feminina, em que ela estava inscrita. 
          Embora as estratégias para a compensação de dose difiram entre mamíferos, moscas e vermes, todos eles envolvem alterações estruturais em todo o cromossomo X. É provável que as características gerais da estrutura do cromossomo tenham sido adaptadas e atreladas durante a evolução, para superar um problema específico da regulação gênica, encontrada pelos animais de reprodução sexuada.3


REFERÊNCIAS


1 SNUSTAD, P. & SIMMONS, M. J. Fundamentos de Genética. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2001.
2 MELLER, V. H. et al. RNA RoX paints the X chromosome of male Drosophila and is regulated by the dosage compensation system. Davis: Cell 88:445-457, 1997.
3 ALBERTS et al. Biologia Molecular da Célula. 4. ed. São Paulo: Artmed, 2004.
4 JORDE, L.B. et al. Genética Médica. 3. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
5 CAMPBELL, N.A. et al. Biologia. 8. ed. São Porto Alegre: Artmed, 2010.
6 NORA J. J. & FRASER F. C. Genética Médica. 3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1991.



*Biólogo, especialista em Genética & Evolução pela UFPI.