DNA

DNA

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

EVENTOS EPIGENÉTICOS (Parte 1) - IMPRINTING GENÔMICO - Lyndon Johnson Batista de Souza*


Par de alelos com dominância completa sob ação do Imprinting Genômico. Reparem que apenas o alelo paterno é expressado!

Herança epigenética é a herança de características transmitidas por mecanismos que não envolvem diretamente a sequência nucleotídica. Os eventos epigenéticos ocorrem por meio de pequenas alterações moleculares no genoma, que podem ser reversíveis, sem comprometer a ordem dos nucleotídeos – como ocorre nas mutações gênicas. Tais eventos, portanto, afetam a regulação da expressão gênica implicando em modificações fenotípicas sem alterar o genótipo.1 Existem várias rotas bioquímicas em que a epigenética se faz presente: diferenciação celular, silenciamento de genes, alguns cânceres, ação do RNAi, algumas síndromes genéticas, variações em gêmeos monozigóticos, inativação do cromossomo X em mamíferos, eficiência das enzimas de restrição e  ao meu modo de ver, o mais curioso dos eventos epigenéticos, o impriting genômico.
Na genética mendeliana, um dado alelo terá o mesmo efeito quer seja herdado do pai ou da mãe. Entretanto, modernamente sabe-se que existem algumas características em mamíferos (desenvolvimento embrionário, formação da placenta e crescimento fetal) que dependem de qual genitor passou adiante os alelos para aquelas características. Essa variação no fenótipo, dependendo se um alelo é herdado do progenitor macho ou fêmea, é chamada de imprinting genômico.2 Sempre que a expressão de um gene é condicionada por sua origem parental, fala-se que o gene foi imprintado, um termo que pretende transmitir a ideia de que o gene foi marcado de algum modo, para que “lembre” de qual genitor veio.3
O impriting genômico ocorre durante a meiose na formação dos gametas, em células da linhagem germinativa, resultando na inativação alélica de certos genes. Como esses genes são impressos diferentemente nos espermatozoides e óvulos, um zigoto expressa apenas um alelo de um gene impresso, ou o alelo herdado da mãe ou o alelo herdado do pai. As impressões são transmitidas para todas as células do corpo durante o desenvolvimento; assim, ou o alelo materno ou o paterno de um determinado gene impresso é expressado em cada célula daquele organismo. Em cada geração, as impressões antigas são “apagadas” durante a gametogênese e os cromossomos dos gametas em desenvolvimento são novamente impressos de acordo com o sexo do individuo formando os gametas. Em uma determinada espécie, os genes são sempre impressos da mesma forma. Por exemplo, um gene impresso para a expressão do alelo materno é sempre impresso para a expressão do alelo materno, geração após geração.4
Segundo Snustad & Simmons - 2ª ed. Guanabara Koogan.
Segundo Snustad & Simmons - 2ª ed. Guanabara Koogan
     Um dos primeiros genes impressos a ser identificado pela ciência foi o fator 2 de crescimento semelhante à insulina (Igf2), que apesar de imprescindível para o desenvolvimento embrionário no meio uterino, apenas o alelo paterno é expressado. Logo em seguida foi descoberto o gene H19 que só se expressa da linhagem materna produzindo um RNA não codificante que tem a propriedade de inibir a transcrição do Igf2, assim regulando o crescimento fetal. A superexpressão do Igf2 pode ser responsável pelo crescimento excessivo do embrião e, em geral, só se expressa na ausência de H19. O interessante é que a expressão dos genes H19 e Igf2 estão intimamente ligadas, uma vez que estão expressos nos mesmos tecidos durante o desenvolvimento fetal, embora a partir de diferentes alelos parentais.5 
     De acordo com a “Teoria do Conflito Genético”, o impriting genômico é consequência de um efeito evolutivo entre os mamíferos, os genes que sofrem imprinting seriam mediadores da “batalha entre os sexos” no período fetal, apresentando funções opostas: genes de expressão paterna geralmente promovem o crescimento (por exemplo, Igf2), enquanto genes de expressão materna o suprimem (por exemplo, H19, que inibe a transcrição do gene Igf2). Isto sugere que o interesse paternal é na otimização de seus alelos para adquirir maior quantidade possível de nutrientes, assim garantindo descendentes maiores e mais fortes. No entanto, o interesse das fêmeas é de restringir o crescimento fetal, assim assegurando sua sobrevivência e do feto, possibilitando uma vida reprodutiva mais longa.5 
          No fim da década de 1980, dois grupos de cientistas, um na Filadélfia e outro em Cambridge criaram camundongos uniparentais fundindo pronúcleos de dois óvulos e de dois espermatozoides. No caso de embrião de duas mães, ele estava adequadamente organizado, mas não podia produzir uma placenta com que se sustentar. No caso dos dois pais, o embrião desenvolveu uma placenta grande e saudável e a maior parte das membranas que envolvem o feto. Mas dentro, onde o embrião deveria estar, havia uma massa desorganizada de células sem nenhuma cabeça perceptível.6
Esses resultados revelaram que os genes paternos são responsáveis pela placenta e os maternos são fundamentais para o desenvolvimento do embrião e do cérebro. Por que deveria ser assim? A resposta foi dada por David Haig de Oxford! Ele interpretou que a placenta não era um órgão materno destinado a dar sustento ao feto, mas sim um órgão fetal projetado para parasitar o suprimento de sangue materno e não tolerar nenhuma oposição no processo. Haig observou que a placenta literalmente cava seu caminho nos vasos da mãe, forçando-os a se dilatar, e em seguida produz hormônios que aumentam a pressão arterial e a taxa de açúcar ao sangue da mãe. A mãe reage aumentando seus níveis de insulina para combater esta invasão. Mas, se por alguma razão o hormônio fetal não é produzido, a mãe não precisa aumentar os níveis de insulina, o que resulta em gravidez normal. Em outras palavras, embora mãe e feto tenham um propósito comum, eles disputam ferozmente sobre a quantidade de recursos da mãe que o feto pode ter – exatamente como mais tarde fazem durante o desmame. Portanto o imprinting paterno parece “desligar” seletivamente genes envolvidos com o desenvolvimento do embrião, e o imprinting materno parece “desligar” seletivamente genes envolvidos com formação da placenta.6 Tentarei explicar esse cabo de guerra! 
          O conflito entre machos e fêmeas vem do fato da fêmea carregar o filhote no ventre e ter certeza que ele realmente é seu. Já o macho pode muito bem estar criando um filhote que saiu da barriga de sua fêmea, mas que não é dele. Uma placenta bem desenvolvida dá origem a um bebê maior e mais forte, que tem mais chances de sobreviver, mas enfraquece tanto a mãe quanto os outros filhotes que ela possa estar carregando na mesma gestação. Em muitos mamíferos é comum a poliovulação/polifecundação - a fêmea é capaz de carregar filhotes de diferentes machos em uma mesma gestação. Se um filhote carrega um gene do pai que estimula a formação de uma placenta grande, então aquele filhote receberá mais nutrientes que os outros, e nascerá com  mais chances de sobreviver. Para o filhote e para o pai dele é ótimo, mas para a mãe e os outros filhotes dela, é muito ruim.
          Como a mãe tem sempre certeza que os filhotes são dela, ela quer mais é variar o macho, para ter uma prole diversificada, e com mais chances de ter seus genes se fixando na população. Para isso, ela quer garantir que os recursos energéticos que pode investir na reprodução, sejam divididos igualmente entre os filhotes, sem que ela aumente o risco de morte durante o nascimento, ou seja, prejudicada nas próximas gestações. Para o macho, essa diversificação da fêmea não é interessante, porque criar futuros competidores para os seus genes. Então ele, além de cuidar para que ninguém mais fecunde a sua fêmea, coloca nos seus espermatozoides genes que vão explorar os recursos energéticos da fêmea e minimizar as chances de sucesso de outros filhotes dela que não sejam seus.
        Isso explica o motivo pelo qual o imprinting não ocorre em animais que põe ovos, porque uma célula dentro do ovo não tem meios de influenciar o investimento feito pela mãe no tamanho da gema: ela está fora do corpo antes que a mãe possa manipulá-la. Da mesma forma, mesmo em marsupiais, como cangurus, com bolsas no lugar de placentas, não têm genes que sofram imprinting. O imprinting é uma característica de mamíferos eutérios e de angiospermas cujas sementes obtêm sustento da planta que a gerou. 
        Por tudo isso, parece que os genes com imprinting são encontrados, de modo geral, em pares antagônicos e que existem somente para combater um ao outro. Vejamos um outro exemplo. No SNC, a maior parte do prosencéfalo (córtex cerebral) é construída por genes “marcados” pela mãe, enquanto grande parte do hipotálamo, na base do cérebro, é construído por genes “marcados” pelo pai.7 Na opinião do cientista Robert Trivers do Imperial College de Londres, esta diferença reflete o fato de que o córtex tem a função altruísta de cooperar com os parentes maternos, enquanto o hipotálamo, centro controlador das emoções, é um órgão egoísta. 
     Para finalizar, relembro duas importantes síndromes estudadas na genética médica, a Síndrome de Prader-Willi (PWS) e a Síndrome de Angelman (AS). Vejamos o quadro fenotípico:
Síndrome de Prader-Willi: Baixa estatura, hipotonia (tônus muscular fraco), obesidade, mãos e pés pequenos, olhos e boca estranhos, flacidez, apetite voraz, hipogonadismo e retardo mental.
Síndrome de Angelman: Crianças tesas, magreza, hiperatividade, insônia, cabeça pequena, prognastismo, convulsões, são alegres, marcha atáxica (lembrando marionetes), não falam e também possuem retardo mental.
Em ambas as doenças, 70% dos casos são causadas por deleções no braço longo cromossomo 15. Na Síndrome de Prader-Willi o que ocorre é o seguinte, existem no cromossomo 15 pelo menos dois alelos (SNRPN e NECDIN) em linkage que só se expressam no cromossomo paterno, pois no materno estão imprintados. Como esses genes estão próximos, quando ocorre a deleção, não é produzido nenhum produto gênico e a síndrome se manifesta. Para a Síndrome de Angelman existe um gene (UBE3A) também no cromossomo 15, porém, só funciona o alelo presente no cromossomo materno uma vez que o paterno está imprintado. Quando a deleção inativa essa única versão funcional, ocorre a síndrome. Isso significa dizer que em ambas as doenças faltam um mesmo trecho do cromossomo 15, só que em Prader-Willi o trecho que falta é de origem paterna, enquanto na síndrome de Angelman o trecho que falta é de origem materna. Se for transmitida pelo homem, a doença se manifesta como síndrome de Prader-Willi; se transmitida pela mãe, se manifesta como Angelman. O gene “se lembra” de que genitor ele veio porque é dotado na concepção com uma “marca” materna ou paterna – o imprinting.9
  Além das deleções cromossômicas, uma outra forma de causar PWS e AS é por meio das dissomias uniparentais, uma condição na qual o indivíduo herda duas cópias de um cromossomo de um dos dois pais e nenhuma do outro. Quando duas cópias do cromossomo 15 materno são herdadas, resulta-se na Síndrome de Prader-Willi porque não estão presentes genes paternos ativos. Contrariamente, a dissomia do cromossomo 15 paterno produz a Síndrome de Angelman, pois os alelos para o gene UBE3A nestes cromossomos estão imprintados.10
Segundo Jordan et al. 3ª ed. Elsevier.

Heredograma ilustrando o padrão de herança da deleção e o estado de ativação dos genes relacionados à Síndrome de Prader-Willi (PWS) e Síndrome de Angelman (AS). Segundo Jorde et al. 3ª ed. Elsevier.


















O que vem a ser exatamente a impressão genômica? Em alguns casos consiste em grupos metil (-CH3) adicionados enzimaticamente a nucleotídeos citosina de um dos alelos. Essas metilações contribuem para bloquear o acesso dos fatores de transcrição ao promotor do gene dificultando a transcrição e com isso silenciando um dos alelos de acordo com sua origem parental (expressão monoalélica). Em outros casos, consiste em modificações pós-traducionais que as proteínas histonas sofrem (combinações de metilações, acetilações, fosforilações e nitrilações formando o “código de histonas”) afetando a compactação do DNA e sua atividade transcricional, levando à repressão de inúmeros genes e elementos transponíveis.4  
Com o conhecimento sobre o imprinting genômico, começamos a vislumbrar um fim para o argumento um tanto ridículo sobre as diferenças de sexo que continuaram durante todo o final do século XX e lançaram natureza contra criação. Os que eram a favor da criação tentaram negar qualquer papel da natureza, enquanto os que eram a favor da natureza raramente negaram o papel da criação. A questão não é saber se a criação tem importância, porque ninguém de bom senso jamais negou isso, mas se a natureza tem um papel importante. Meninos e meninas têm sistematicamente interesses diferentes desde o início do comportamento autônomo. Os meninos são mais competitivos, mais interessados em máquinas, armas, façanhas e futebol. As meninas são mais interessadas em pessoas, roupas, palavras e novelas. Para colocar as coisas mais claramente, não é apenas graças à criação que os homens gostam de mapas e as mulheres, de romances.
De qualquer modo, o experimento perfeito, embora de uma crueldade despropositada, foi feito pelos que apoiavam a criação pura. Na década de 1960, em Winnipeg, uma circuncisão malfeita deixou um menino com um pênis tão gravemente ferido que o médico decidiu amputá-lo. Ele resolveu tentar transformar o menino em uma menina por meio de castração, cirurgia e tratamento hormonal. John virou Joan; ela usava vestidos e brincava com bonecas. Ela se transformou numa moça. Em 1973, John Money, um psicólogo freudiano, afirmou, em um repente de publicidade pessoal, que Joan era uma adolescente bem adaptada, e seu caso, assim, encerrava toda especulação: os papéis sexuais eram constituídos socialmente.
Foi só em 1997 que alguém resolveu verificar os fatos. Quando Milton Diamond e Keith Sigmundson procuraram Joan, encontraram um homem, feliz em seu casamento com uma mulher. Sua história era muito diferente daquela contada por Money. Ele sempre se sentira profundamente infeliz na infância e queria vestir calças, misturar-se com os meninos e urinar de pé. Aos 14 anos, ele ouviu de seus pais o que tinha acontecido, o que lhe trouxe um grande alívio. Ele interrompeu o tratamento hormonal, mudou seu nome de novo para John, retomou a vida de um homem, removeu seus seios e com 25 anos casou-se com uma mulher e adotou seus filhos. Considerado uma prova dos papéis sexuais socialmente construídos, ele provou exatamente o contrário: que a natureza tem um papel importante no sexo. A evidência da zoologia sempre apontou nesta direção: o comportamento masculino é sistematicamente diferente do feminino na maioria das espécies, e a diferença tem um componente inato. O cérebro é um órgão com um sexo inato. A prova contida no genoma, de genes com imprinting e de genes dos comportamentos relacionados com o sexo, agora aponta para a mesma conclusão.6

REFERÊNCIAS


1 MULLER, H. R. & PRADO, K. B. Epigenética: Um Novo Campo da Genética. Curitiba: Universidade Positivo, 2008.
2 BONALDI, A. Estudo Genético da Síndrome de Silver-Russel. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 2011.
3 SNUSTAD, P. & SIMMONS, M. J. Fundamentos de Genética. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2001.
4 CAMPBELL, N.A. et al. Biologia. 8. ed. São Porto Alegre: Artmed, 2010.
5 GOMES, L. F. S. Padrão de Metilação dos Genes IGF2 e XIST em Ovócitos Oriundos de Folículos Pré-antrais de Vacas Nelore (Bos taurus indicus). Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, 2011.
6 RIDLEY, M. Genoma: a autobiografia de uma espécie em 23 capítulos. Rio de Janeiro: Record, 2001.
7 MOORE, T. & REIK, W. Genetic conflict in early development: parental imprinting in normal and abnormal growth. Cambridge: Laboratory of Developmental Genetics and Imprinting, the Babraham Institute, 1996.
8 AUSTIN, B. TRIVERS, R. Genes in Conflict: The Biology of Selfish Genetic Elements. Cambridge: Harvard University Press, 2006.
9 JORDE, L.B. et al. Genética Médica. 3. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
10 BILIYA, S. & BULLA, L. A. Jr. Genomic Imprinting: The Influence of Differential Methylation in The Two Sexes. New Jersey: Experimental Biology and Medicine, vol. 235, p. 139-147, 2010.


*Biólogo, especialista em Genética & Evolução pela UFPI.